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Foto do escritorGustavo Burkhart

Artista singular

Artigo: Na história da civilização há mulheres obstinadas, ambiciosas e cultas. Maria trazia essas qualidades mais o talento artístico. As vidas de uma artista singular.

Por Charles Cosac, para o Valor, de São Paulo - 04/06/2010

"Gleba-Asas": entre as esculturas que acabaram ganhando importância mundial

Nascida em Campanha (MG), em 1894, Maria de Lourdes Faria Alves era filha de João Luís Alves e Fernandina de Faria Alves. Era a primogênita de três irmãs e muito se beneficiou da rápida ascendência e do sucesso profissional de seu pai. João Luís proporcionou a ela o que havia de melhor no Brasil da virada dos séculos XIX para XX: residir na capital federal (Rio), estudar no Colégio Sion (Petrópolis), ser alfabetizada em francês, tocar piano, ter uma boa iniciação literária e esperar por um bom casamento, cujo marido provavelmente seria apresentado por seus pais, o que realmente ocorreu.

Maria Tarquínio de Sousa

"Gleba-Asas": entre as esculturas que acabaram ganhando importância mundial.

Em 1915, aos 20 anos, Maria casou-se com Octávio Tarquínio, seu primeiro marido, de quem teve duas filhas: Maria Lúcia e Mayse. A última morreu aos 3 anos, de meningite, em Paris.

Maria com "Minha Canção": salvo raras exceções, ela foi maltratada pela crítica nacional

De temperamento dominador, sua primeira atitude pouco comum para uma brasileira em 1925 foi romper seu casamento com Tarquínio, justamente durante uma viagem mais de reconciliação do que de trabalho (o casal e as duas filhas estavam passando uma temporada em Roma).

A segunda teria sido sua união quase imediata com o embaixador Carlos Martins Pereira e Sousa, com quem se casou segundo as leis francesas - no Brasil não havia divórcio - e com quem teve mais duas filhas, Nora Yolanda e Anna Maria Pia.

Maria Martins Pereira e Sousa

Embora Maria Martins tenha sido seu terceiro nome, foi com esse sobrenome que veio a se celebrizar. A união de Maria com Carlos Martins foi sempre tão estável que seu primeiro casamento foi praticamente esquecido. Carlos Martins proporcionou a ela algo atípico aos pleitos da época: liberdade. O casal mantinha uma relação moderna, porém cúmplice.

Apesar da relação bem resolvida entre eles, alguns contingentes poderiam ter comprometido a imagem de Maria Martins em seu segundo casamento: após ter rompido sua primeira união, ter sido acusada de adultério, ter perdido a tutela da filha, ter perdido o apoio da mãe, que se responsabilizou oficialmente, com o aval do genro, pela criação da neta em solo brasileiro, e, por fim, ter se unido quase imediatamente a outro homem. O retorno de Maria para o Brasil foi muito difícil, sobretudo por ela já pertencer à alta sociedade do país, ainda fortemente dominada pelos preceitos católicos.

Carlos Martins era diplomata. O casal levou uma vida atipicamente internacional: de 1925 até seu estabelecimento por quase dez anos nos Estados Unidos, em 1938, os Martins viveram em diversos países, do Equador ao Japão. Essa vida internacional certamente ampliou o escopo da futura artista. Maria não viveu entre países e continentes. Não poderia ser, portanto, classificada como cidadã do mundo. Ela levava o mundo dentro de si aonde quer fosse.

Maria

O gênio de Maria - nome eleito por ela para assuntos relacionados às suas atividades artísticas - residia na sua enorme capacidade de absorção, no seu talento monstruoso, seu interesse incansável pela vida, pelo novo, seu forte desejo em se expressar - fosse como embaixatriz, artista ou mulher; fosse numa galeria de arte, num jantar de gala ou numa missão oficial.

O monstro de Maria foi ela ter deixado uma obra construída em pouco mais de uma década, nos anos em que viveu nos Estados Unidos e em um dos períodos mais ricos da história da arte no século XX: o entreguerras. O turbilhão artístico pelo qual Maria passou aconteceu principalmente em Nova York, cidade onde a artista mantinha residência e ateliê abertos, apesar de viver oficialmente em Washington com o marido.

Sua primeira individual ocorreu em 1941, aos 47 anos, em Washington. A segunda, em 1942, poucos meses após, em Nova York. Dado o curto intervalo entre as duas, elas foram muito similares, senão idênticas. De natureza acadêmica, sem estilo definido, as exposições pendiam mais para uma linguagem estatual a escultural. De todo modo, nessas duas exposições o mundo conheceu uma jovem artista adulta, talentosa e promissora.

A Amazônia de Maria

Em 1943, ainda em busca de uma linguagem própria, insegura artisticamente, talvez ela se sentisse compelida a atribuir um tema, uma razão à sua obra escultórica. Maria fez um vão apelo às suas origens natais. A exposição "Amazônia" consistia num conjunto de oito bronzes - deuses amazônicos, quase todos desastrosos artisticamente, hoje educadamente classificados como anedóticos.

Todavia, a artista talentosa e promissora teria chamado a atenção de gente séria como Breton, com a obra "Cobra-Grande" e, em 1944, com a obra "Macumba", atualmente no Museu de Arte Moderna de San Francisco. O rápido reconhecimento pode ter vindo não pelo exotismo cultural, mas naturalmente pelo aspecto antropofágico que, até certa medida, poderia ter sido visto como uma linguagem alternativa à produção artística do entreguerras, geralmente politizada e cética. A Amazônia de Maria não era idílica e muitas vezes tão ou mais violenta quanto o que ocorria em grande parte do planeta.

Não venho dos trópicos

O essencial de sua obra foi exposto entre 1944 e 1948. Já membro, ou quem sabe mentora, da segunda fase do surrealismo, Maria realizou mais duas exposições individuais na Valentine Gallery (onde já tinha exposto em 1942 e 1943), em 1944 e 1946. Já em 1947 expôs pela primeira vez na Julien Levy Gallery (um dos endereços mais prestigiosos do surrealismo em Nova York) e, em 1948, na Galerie René Drouin, em Paris. Maria não era dos trópicos, simplesmente viera dos trópicos.

A artista não enfrentou problemas de identidade cultural, discriminação religiosa racial, conflitos pendulares que muito limitaram artistas emigrantes como Mira Schendel [da Europa para o Brasil] e Mary Vieira [do Brasil para a Europa]. Por fim, obras de importância mundial como "O Impossível", "Não te Esqueças Que Venho dos Trópicos", "Gleba-Asas", "O Implacável", "Todavia", "Sem Eco", "Como uma Liana" e "A Mulher Perdeu a Sombra" foram frutos de aproximadamente cinco anos de trabalho árduo e apaixonado. Esse período teria também marcado seus affaires amorosos com os artistas Marcel Duchamp, Piet Mondrian e Jacques Lipchitz, com quem aprendeu e a quem certamente ensinou.

Embaixatriz Carlos Martins

Carlos Martins aposentou-se do corpo diplomático em 1949 e os Martins retornaram definitivamente da França para o Brasil. O casal fixou residência no Rio até o fim da vida.

A primeira exposição de Maria em solo brasileiro deu-se no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), ainda na rua 7 de Abril, em 1950. De cunho retrospectivo, continha obras iniciais, como "Cobra Grande", até criações mais recentes, como o badalado "O Oitavo Véu", fundido em 1949.

Ao chegar, a artista também participou das três primeiras Bienais de Arte de São Paulo: 1951, 1953 e 1955. Foi também conselheira da Bienal, a convite de Ciccillo Matarazzo. Em 1953, na segunda edição do evento, sua obra "O Calendário da Eternidade" foi laureado com o Prêmio Aquisição. Em 1955, a artista ganhou o prêmio de melhor escultura com "A Soma dos Nossos Dias". Os dois trabalhos pertencem ao acervo permanente do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP).

Com exceção dos críticos Sérgio Milliet e Walter Zanini, Maria não poderia ter sido mais marginalizada do que foi pela crítica nacional contemporânea. A questão não se encontrava no duelo entre construtivismo versus figurativismo, pois na ocasião houve grande objeção ao fato de o "Objeto Tripartido" de Max Bill ter ganhado o principal prêmio da primeira Bienal.

Em 1951, a segunda fase do surrealismo não estava mais em voga, e a verdade é que o surrealismo nunca foi popular no Brasil. O nível social da artista também não favorecia. A trajetória de Maria era incomum a todos, talvez mais ainda aos artistas sempre a margear dificuldades e limites financeiros. Na imprensa, era explícito o preconceito. No Brasil, a crítica reduziu-a à "ilma. sra. embaixatriz Carlos Martins".

De um lado, Maria não era a brasileira com maior circulação no exterior. Do outro, ela não era a artista estrangeira com grande aceitação no Brasil. Todavia e em comum, Maria sempre salpicava algo de brasileiro, mesmo no Brasil, em tudo o que fazia. É possível que isso tenha impedido a crítica de analisar a sua obra de maneira menos preconceituosa. De todo modo, os tempos eram outros: o expressionismo abstrato já dominava e logo viria a arte pop. Portanto, não seria implausível dizer que o ostracismo ao qual a obra de Maria foi condenada fora exclusivo dela. Duchamp e Louise Bourgeoise, por exemplo, tiveram destinos similares.

Porém, graças à sua grande proeminência social, suas atividades escultóricas, ainda que drasticamente reduzidas, não foram interrompidas. Após seu retorno definitivo para o Brasil, Maria executou ainda as seguintes obras:

- Oscar Niemeyer encomendou duas maquetes, cujos projetos não foram realizados: uma para uma fábrica de peixes e outra para o edifício de "O Cruzeiro".

- Em 1955, Maria instalou a obra "Galo Gaulês II" na Associação dos Comerciários, no Rio.

- Em 1956, instalou a obra "Galo Gaulês I" na fachada da Maison de France, no Rio.

- Em 1959, Maria inaugurou o monumento "Rito do Ritmo" no Palácio Itamaraty, poucos meses antes da inauguração oficial da nova capital federal, Brasília.

- Em 1967, a artista executou e instalou a obra "O Canto da Noite" e a obra "O Caminho, a Sombra, longos demais, estreitos demais" [já fundida], no Palácio da Alvorada.

Além de ter produzido obras públicas em solo brasileiro, Maria foi uma das pedras fundamentais para a mudança do MAM-RJ do Palácio Capanema para seu atual endereço. Auxiliou diretamente sua amiga Niomar Moniz Sodré, diretora do museu, na escolha e na aquisição de obras célebres. Não obstante, escreveu e publicou três livros: "Ásia Maior - O Planeta China"; "Brahma, Gandhi e Nehru" e "Deuses Malditos: Nietzsche" (o primeiro de uma trilogia que não terminou).

Arte + vida

Maria morreu no Rio em 1973, no edifício Tucumã, ante a Baía de Guanabara. A pedido de Niomar (já em Paris) e da sua amiga e então diretora do MAM-RJ, Heloisa Lustosa Aleixo, seu funeral foi realizado no saguão desse museu, como, ou quase como, Maria havia pedido por escrito: sem velas ou flores, em vez disso, esculturas; com um vestido de gala já selecionado, um véu sobre o rosto, mas com os pés descalços. Por fim, que fosse servido uísque, mas do bom.

Em toda a história da civilização há mulheres obstinadas, ambiciosas, cultas e emancipadas. Maria trazia em si todas essas qualidades mais o talento artístico, que, infelizmente, viria a se desenvolver na segunda fase de sua vida, tarde demais para que ela nos deixasse um legado maior, mas não melhor.

Charles Cosac é fundador e editor da Cosac Naify e organizador do livro "Maria"


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